sexta-feira, 9 de março de 2012

Da estética e da ética do (campo) relacional

            Muitas foram as tentativas de tornar científico o campo da relação. Se há algo de sublime no humano, o campo das relações jamais poderá ser resumido ao coerente. Muito pelo contrário, o campo do humano é o campo do ethos anárquico, da impossibilidade e da reconstrução. Toda forma de poética, pede um conflito intenso e pede a resolução (pelo menos parcial) de um problema. Um problema que sempre escapa e que sempre desaparece na tentativa de formaliza-lo. Na sabedoria anárquica de Paul Goodman, encontramos a afirmação da impossibilidade da manutenção e perigo no desejo de eternizar o contato. Este é pathos faustiano que diz “Fica, eras tão belo” (Gestalt-terapia, PHG p. 226), mas se fica, não se esvai e não da margem para o novo. O novo pode brotar-se do mesmo, e no mesmo constituir-se como reformação. O mesmo pode brotar-se do novo, e no novo se ajustar.
            Sendo assim, o trágico passa a se constituir como a mais bela forma de manifestar a potencia do humano. Nietzsche não hesitou em acusar a nossa sociedade conceitual de apática e (ao mesmo tempo) inquisidora. O avanço do pensamento socrático destituiu do homem a capacidade de transfiguração do mundo e, por que não dizer, do seu contato primário com a facticidade e com a vida. Ao transpor a estética da arte do canto trágico para o conceito e para a metafísica, nós não perdemos só uma forma de arte, mas sim, uma forma de compreender e viver a vida. “O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isto chamei de dionisíaco, isso entendi como a ponte para a psicologia do trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, Não para purificar-se de um perigoso afeto mediante uma veemente descarga – assim o entendeu mal Aristóteles - mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir a ser – esse prazer traz em si também o prazer no destruir... (Ecce Homo, Nietzsche, p. 64)
            É no dionisíaco que há a chave para o humano, é no eterno retorno e no pathos do vivido que podemos de fato encontrar a dimensão do que realmente interessa: o dia e a noite como formas de afirmação do cotidiano. É no começar e deitar de cada dia que a diversidade se manifesta. É porque sempre há o novo do novo que o desejo pode se caracterizar com suas mais variadas máscaras. Essa é a arte do vivido, o artista da própria vida: a poesia do falar de si para o outro, a musicalidade do dizer e a pintura da alma. “Para o artista, naturalmente, a técnica e o estilo são tudo: ele sente a criatividade como seu excitamento natural e seu interesse pelo tema (...), mas a técnica é sua maneira de moldar o real para que seja mais real (...) o estilo é ele próprio, é o que exibe e comunica” (Gestalt-terapia, PHG, 200-201).
            Eis o porquê que o campo relacional é arte. Toda arte marca e constitui uma segunda voz do canto do mundo. A sutileza do traço é como a harmonização das notas: elas só encontram a perfeição no que fere a neutralidade e o status quo.
            Fazer ciência do encontro é tentar tatear no escuro. É tentar dar nome àquilo que escapa e que se esconde por de trás do vivido. É a falácia do Apolíneo. Nenhuma experiência significativa se fez na cientificidade. O “eureca” é um estado da arte e só depois se transforma em conhecimento. A maçã de Newton foi, antes de mais nada, uma emoção.
            Se apreendemos o discurso prático-teórico na derrubada do discurso da arte, em que pé podemos pensar o campo psicoterápico? É justamente na contramão deste discurso. É no ethos do acolhimento ao que escapa e na estética da produção criativa que podemos dar estatuto de autoridade ao que nos mobiliza e nos torna vivos. A psicoterapia é sempre um risco social, como nos diz Goodman, e o campo de tresvaloração de todos os valores (Nietzsche). É, no tatear da conquista de aos poucos (re)constituir-se, que podemos encontrar a voz de uma ação significativa em relação ao sujeito. Sujeito ao seu desejo e a sua virtualidade. E agora, no campo do vivido, o pathos faustiano retorna não mais como o impedimento do fechamento, mas como a construção de uma marca biográfica que jamais poderá ser apagada. E é na reconstrução da história que podemos achar as faíscas da clínica.

Um comentário:

  1. Muito bom, Cezar! À guisa da troca de idéias, acho que podemos pensar que 'a ética é a estética'. E que, de qualquer forma, estamos no âmbito de um Ciência compreensiva, no âmbito de uma Ciência do Ator, e não do espectador: uma Ciência do Inspectador. Uma Ciência sem objeto,sem objetividade, nem subjetividade, nem 'intersubjetividade' (tsk, tsk...:-); uma ciência fora das relações de causa e efeito, fora dos usos e das utilidades, e for mesmo da realidade...
    Abraço.
    Afonso.

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