sexta-feira, 30 de maio de 2014

Ensaio sobre a Crise da Modernidade e a Educação: Diálogos com Paul Goodman



 Em uma conversa com um colega da Pós-Graduação em Educação, ele me lembrou de um ponto bem interessante. Em Emília no País da Gramática, Pedrinho diz para Dona Benta: “- Ah, assim, sim! – dizia ele – Se o professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até viraria brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porções de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndios...”. Pedrinho sabia muito bem que, nos meses que passava no Sítio, ele aprendia muito mais do que todo o ano na escola. Talvez, Monteiro Lobato que por muitas vezes tem-se tentado tirá-lo das escolas (Não entraremos nessa questão aqui), tenha nos apresentado nosso folclórico arauto de desescolarização. Ora, o que acontecia com Pedrinho era a impaciência - ou intolerância - de nove em cada dez crianças que são encaminhadas para os estudos escolares.  Nosso herói conseguia perceber que a vida encantada do sítio era o “mundo lá fora” que a escola insistia em esconder. No mundo real existem sacis, bonecas falantes, lobisomens, porcos com títulos de marquês, jacarés de vestidos, espigas de milho que sabem tudo (ou que pensam que sabem de tudo).

A escola moderna é sem dúvida a filha mais perfeita do humanismo, pois, é na escola moderna, como diria Paul Goodman, que as crianças aprendem que a vida é rotina, que é desvitalização e inutilidade. O ideal humanista pressupunha que as pessoas deveriam ser escolarizadas para que pudessem se tornar humanas e, por isso, socialmente reconhecidas. O letramento tornou-se o rito de passagem segregador, que divide claramente os capazes e os incapazes, os certos e os errados. Uma educação que presa prioritariamente pela sabedoria (não popular) e o acumulo de conhecimentos, tudo isso junto ao enquadramento a um modelo igualitário (que beira a indiferença) e ao mesmo tempo segregador.

Talvez tenha sido John Dewey um dos primeiros educadores que tentou destituir o modelo humanista de acumulo de conhecimentos e tentar imputar uma nova forma de configurar o lugar da educação. Sua proposta era a de inserir uma atitude diferenciada ou curiosa e uma boa dose de metodologia científica nas crianças. Assim, o professor não era o tutor do conhecimento, mas era um facilitador que tinha como objetivo ajudar o aluno a ser capaz de construir um problema, buscar formas de estudo sobre o problema, levantar e aplicar hipóteses e por fim, solucionar o problema. É claro que essa metodologia empirista de educação não ficou livre de críticas e que seu pragmatismo foi muitas vezes confundido com uma forma de utilitarismo exacerbado. Porém, é louvável o apontamento que Dewey denota do fim (ou crise) do projeto humanista e a necessidade de uma mudança intensa das políticas de educação.

Mas porque tanto alarde para um possível fim do humanismo? O problema do fim ou crise do humanismo é um dos principais fundamentos do debate dos séculos XX e XXI, que denota a guerra constante entre os ‘’modernos’’ e os “pós-modernos”. Grosso modo, podemos dizer que o debate acerca dessa problemática ronda em torno de uma pergunta fundamental: é ainda possível que seja cumprida a promessa da modernidade? A modernidade buscava o esclarecimento nos caminhos de Descartes, Locke, Kant e Hegel. Para todos eles, de certo modo, era a razão (ou esclarecimento) a via possível para o desenvolvimento de uma educação (e, por conseguinte uma sociedade) humanitária.

O século XX viu como os próprios olhos o resultado da filha mais amada da modernidade, a saber, a ciência. O fascismo, a bomba atômica, a eugenia, as estratégias midiáticas de controle popular, tornaram a promessa moderna de salvação pela razão, um problema que os Frankfurtianos não se esquivaram de debater.  É claro que é ingênuo pensar que esse debate não tenha afetado o melhor instrumento da modernidade, a saber, a escola.

No belíssimo livro chamado “A nova filosofia da educação” de Ghiraldelli Jr e Susana de Castro, Ghiraldelli Jr nos aponta o lugar da escola na normatização da sociedade moderna:

“É como se a era da individualidade, da democracia liberal moderna tivesse desembocado na era da democracia das massas em que todos são individuados, mas não se tornam indivíduos, uma vez que a prerrogativa destes, a autonomia, é em grande medida ilusão. A escola, nesse meio, é a máquina produtora dos que vão viver essa ilusão.” (p. 46)

Goodman já havia mostrado em seu ensaio Freedom and Autonomy de 1972, que o grande erro da sociedade ocidental é busca constante de liberdade e não de autonomia. A liberdade política é uma ilusão neo-liberal, enquanto que a verdadeira política nasce da verdadeira autonomia.  Goodman sabia que o modelo escolar em nada colaborava na produção de uma autonomia, pois, como ela afirma em Compulsory Miseducation, é na escola

E não em casa ou em contato com os amigos, a maioria dos nossos cidadãos de todas as classes aprende que a vida é, inevitavelmente rotina, despersonalização e venalidade, que é melhor obedecer e calar-se, que não há espaço para a espontaneidade, a sexualidade aberta e liberdade de espírito. Formados nas escolas, se adaptam aos mesmos postos de trabalho, à mesma cultura, e à mesma política. Esta é a educação, a deseducação, a adaptação às normas nacionais e o enrolamento em função das ‘necessidades nacionais’. (Goodman, 1964, p. 23 )

  Confesso que muitas vezes penso em ceder ao mote de Ivan Illich em seu clássico “Sociedade sem Escolas” como forma de desinstitucionalizar a escola e, na melhor forma anarquista, destruir, de uma vez por todas, essa instituição dessubjetivante. Porém, ainda é Paul Goodman quem vem ao socorro de não sucumbir a tamanho radicalismo. Goodman é, talvez, quem melhor reconhece a ambigüidade da modernidade e a ambigüidade do esclarecimento. Goodman reconhecia claramente a problemática de Illich (inclusive Illich o considerava o seu “pai espiritual”), ou seja, a ideia de que a institucionalização é o principal motor da violência e da destrutividade. Não era um anti-humanista, mas poderia facilmente concordar com a sabedoria de Ghiraldelli Jr que, a partir daí Heidegger mostra o fundamento da violência institucional que vivemos hoje: “Essa violência teria um corpo bem determinado: a cabeça seria formada pela filosofia, como epistemologia ou ‘metafísica da subjetividade’; o coração seria a ciência; as mãos, a tecnologia” (Ghiraldelli Jr, 2014, pag. 31). Ou seja, os produtos da modernidade se tornaram os principais agentes de violência e de opressão contemporânea.

Sem dúvidas o projeto moderno transformou o homem em um objeto de estudo moldável, objetivo e parte da natureza comum. Goodman, nesse sentido apresentava uma antítese do naturalismo tal como ele é pensado pelos modernos. Sim, o homem é natural, mas a natureza não pode ser entendida como um lugar estático e previsível, objetivo e capaz de serem inferidas leis determinantes e invariáveis (seja sobre o homem ou qualquer outro campo natural). Goodman apontava uma leitura do universo quase como a de Lucrécio e sua imprevisibilidade dos átomos, ou Heraclito e o Panta Rei. Goodman concordava diretamente com a ideia de uma natureza que tem uma força motriz, tal como o Elán Vital Bergsoniana ou com a natureza como um ser bruto tendo como princípio a diferenciação constante, como encontramos em Merleau-Ponty. As intenções de Goodman eram como muitos tentaram afirmar, quase teológicas.

Dentro desse paradigma, as escolas precisam irromper com o fundamento da modernidade e assumir esse novo lugar. Essa nova proposta foi constituída a partir de influências pragmatista, mas principalmente de base fenomenológica. Para Goodman a escola deve ser o lugar fundamental de aprender e reaprender a ver, ouvir e sentir o mundo, não porque isso precisa ter uma repercussão prática, mas para aprender a acolher a vida como potência e criação. A escola não deve ser um lugar de aprendizado de conteúdos rígidos, mas um ambiente livre de ir e vir (Literalmente, pois Goodman era contra a obrigatoriedade escolar) e que buscasse a educação estética. Talvez Goodman, concordasse que, duas áreas quase que negligenciadas na educação básica, a saber, a educação corporal (Física) e artes, deveriam ser basilares para a constituição da criança. Isso porque, é na vivência do corpo e da expressividade que aprendemos a ampliar nossos horizontes de curiosidade e aprendemos a acolher a diferença no mundo e em nós mesmos. A escola deve ser o espaço de acolhimento aos conflitos genuínos, à aquilo que é estranho e ao indefinido, e se distanciar do espaço de conhecimento do já dito.

 Para Goodman, a escola ainda é o principal instrumento de transformação social e política e nisso ele não abandona o projeto moderno. Mas somente quando a escola deixar de ser um espaço centralizador, totalitário e que inibe a criatividade, é que poderemos de fato trazer transformações significativas no status quo social e político. A escola no modelo Goodmaniano, se enquadra no clichê, mas que poucos aplicam: a escola não é o espaço fechado de estudo, mas a própria vida e a própria comunidade. O modelo escolar de Goodman é o de uma escola sem prédios, que os tutores caminham pelas ruas e que estão articulados com a própria comunidade. A escola promove a experimentação, a ação genuína e a problematização não de uma hipótese científica, mas da própria vida.

Esse é o fundamento de uma educação propriamente anarquista, ou porque não dizer, gestáltica.

  

 Sugestões e referências -
Growing Up Absurd - Paul Goodman
Drawing the Line Again - Paul Goodman
Compulsory Miseducation - Paul Goodman
Sociedade sem Escolas - Ivan Illich
A nova Filosofia da Educação - Ghiraldelli Jr e Susana Castro
Experiência e Educação - John Dewey

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Eu ainda me pego pensando em como a Liberdade de aprender nas ruas, sem educação envolta por paredes, seria de fato praticada. Estariam as pessoas num nível de autonomia tão desenvolvido que o ato seria completamente espontâneo? Ou teríamos que desenvolver métodos de ensino livre? Exatamente por isso é utópico. Mas não tão utópico quanto se pensa, já que se vê claramente a Escola da Ponte funcionar (e ser uma das melhores, embora alvo de críticas ferrenhas) sem paredes-de-concreto-ideológicas, ainda que possuam paredes de concreto real, mas onde se preza pelo ir e vir autônomo e espontâneo das pessoas e onde cada disciplina pode ser aprendida com prazer, já que há um verdadeiro escambo de informações relevantes - e não só um depósito naquele "porquinho butija" o qual denominam o aluno - afim de colher as moedinhas de um futuro promissor (promissor pra quem?).

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