sexta-feira, 24 de junho de 2011

O poeta não morreu, foi ao inferno e voltou


Minha relação com a música sempre foi mal resolvida. Talvez por isso eu nunca tenha me desprendido (e na verdade nunca quero me desprender) do fundo estético que me acompanha até hoje. A música tem o poder de encravar afetos na carne sem pedir nenhuma licença. Ela não precisa de código de ética, de técnica nem de teoria, ela simplesmente se manifesta e é. Pode causar asco, riso, saudade ou desejo, mas poucas passam impunes por ela. 


Uma vez já me perguntaram porque, então, eu não faço musicoterapia ou coisas desse tipo. Pra mim são duas coisas completamente diferentes, e tentar resolver um conflito pela institucionalização é mais uma forma de retirar o status criativo que a música me deixou: uma saudade longínqua, um inacabamento atual e um sentimento potente.

Hoje eu resolvi voltar a escrever sobre outras coisas, outros mundo que me atravessam. Esses dias, ouvi bastante o último disco do Cazuza “Burguesia” (o último em vida). Nas primeiras vezes que ouvi as músicas desse disco, elas pareciam intragáveis. Métricas mal feitas, melodias pouco cantados, guitarras estaladas e uma mixagem feita nas “coxas”. Aos poucos fui digerindo o que as músicas queriam dizer e o sentido “´ético” que atravessavam aquelas canções. Pra mim, o Burguesia é um último grito de imortalidade que se pode dar, e a urgência que a vida o impusera criar.

Certa vez vi circulando na Internet um texto de uma psicóloga falando do absurdo que era a adoração ao Cazuza. Para ela, ele é uma péssima influência para as nossas crianças. Pra mim, um grande absurdo é alguém se dar ao trabalho de escrever algo assim. Cazuza não foi nada além de humano, de tal forma que, em nossa humanidade, transgredimos todo construto da moralidade. Também não quero fazer uma apologia à dizer que ele viveu com toda a potência que poderia, pois sinceramente eu não sei. Só sei que ele sofreu, errou, riu, chorou como qualquer outro ser humano. Escreveu e conseguiu imprimir na história da música brasileira a sua marca, e isso pra mim é o fundamental.

Acredito que toda sua obra carrega a multiplicidade do que ele gostaria de dizer. Sejam nas palavras fortes da primeira música do primeiro disco do Barão  “Você sem texto nem cinema/ Não faz do sexo um problema/ Eu armo uma cena, é, eu armo uma cena! / Quebro garrafa/ Morro de chorar/ Ma ainda te faço dar” (Posando de Star) ou na sutileza de “Todo amor que houver nessa vida”, Cazuza “mostra a sua cara” sem nem mesmo saber qual era ela. Talvez por isso entoa que vai “Pagar a conta do analista, pra nunca mais ter que saber quem eu sou” (Ideologia).

Suas músicas são pratos cheios para os terapeutas, que podem encontrar a nitidez (ou não-nitidez)  de seus conflitos quando diz “Você nunca sonhou/ ser currada por animais? / Nem transou com cadáveres? / Nunca traiu seu melhor amigo?/ Nem quis comer a tua mãe? / Só as mães são felizes” (Só as mães são felizes) ou “Você tem que entender / que eu sou filho único/ Que os filhos únicos são seres infelizes / Eu tento mudar / Eu tento provar que me importo com os outros/ mas é tudo mentira” (Filho único). Ele escrevia com desejo, pra chocar, pra provar sua posição.

 Algo que sempre me chamou atenção foi a posição religiosa que Cazuza assumiu, às vezes com uma conotação meio atéia, mas sempre mostrando a sua ambigüidade: “ Agradeço por ter desobedecido / Por ter cuspido no teu altar sagrado / E por saber que nunca vou ter fé / E vou rir só com um canto da boca” (Eu agradeço). Escreve também, junto com Gilberto Gil: “Estranho o teu Cristo, Rio/  Que olha tão longe, além / Com os braços sempre abertos / Mas sem proteger ninguém” ( Um trem para as estrelas). Mas mesmo assim, encerra sua vida dizendo “Eu sou assim com essa voz desafinada / Peço a Deus que me perdoe no camarim” (Quando eu estiver Cantando).

Na verdade ele não ficou calado. E por isso retorno ao “Burguesia”, pois mesmo completamente debilitado, ele ainda queria se imortalizar. Queria deixar a sua marca no mundo. Meio egoísta sim, mas não acredito que nenhum escritor, poeta ou compositor também não sinta esse amargo embaixo da língua.
Sempre gostei da música direta, sem frescura, sem rodeios.  A música que toca por que diz de cada um. Três ou quatro acordes, pouca modulação, a voz fraca e as vezes desafinada, mas com vigor por que defende o que faz. Quando Cazuza não conseguia mais cantar por causa da doença, declamava, desafinava. A voz rouca não deve agradar o ouvido de muitos que não entendem a estética da expressão.

É a beleza do “beijo da boca do luxo na boca do lixo”(Balada de um Vagabundo).

2 comentários:

  1. Excelente texto!

    Minha relação com a música é muito parecida com a que vc descreve: pra mim é uma experiência visceral (o que me faz lembrar do conceito de experiência estética, tão repetido nas aulas de História da Arte), que mexe com os meus sentidos e com as minhas sensações, de forma dramática ou sutil, mas que sempre acontece. Sempre.

    Nunca consegui o que tantos conseguem, "tomar" como meu um único estilo musical.

    Agora deu vontade de ouvir Cazuza.. =)

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  2. Sonhamos com a imortalidade. Na música, sendo poeta ou não, amargamos a finitude. Escrevemos, lemos, temos filhos, fazemos amigos. Tudo para que quando formos embora, alguem lembre que estivemos aqui. Senão, que graça teria? Nossa memória perdura marcada em cada um daqueles com quem tivemos um encontro genuíno. Cazuza, passa a idéia, de ter vivido o que podia (e tantas vezes o que queria). Entre ser uma péssima influencia, todos somos em algum momento. Porque como você diz, somos humanos. A melhor maneira de curtir Cazuza é ler em suas letras a vontade. A vontade de falar. A vontade de imprimir na história suas idéias, sejam elas seguidas ou não. A vontade da vida, de se "emputar" e rir com tantas coisas. E ele conseguiu. No "inferno", ele volta todos os dias na boca das pessoas que cantarolam suas músicas.

    Cecília

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