Depois do post anterior sobre as
especificidades da atuação do psicólogo, algumas pessoas têm me perguntado
sobre a formação do psicólogo clínico. A pergunta mais básica, e que é
fundamental, que eu tenho ouvido é: “Eu posso abrir um consultório se eu não
tiver feito a ênfase em clínica?”. Sem dúvidas é muito pertinente a questão,
pois ela abrange desde questões legais até os aspectos éticos da atuação
clínica.
Primeiro ponto fundamental diz
respeito aos aspectos legais da formação do psicólogo. Como dito no post
anterior, a formação do psicólogo é generalista. Mesmo com a proposta das
Ênfases, não aparece no diploma do psicólogo nenhuma referência à qual(is)
ênfase(s) ele cursou, muito menos qual abordagem ele fez estagio. A formação do
psicólogo permite o profissional atuar em qualquer área da psicologia,
incluindo a clínica.
Historicamente, a psicologia (no
Brasil) ficou muito atrelada ao desenvolvimento da psicologia clínica. Nas duas
últimas décadas houve um movimento intenso de transformação da psicologia
dentro do contexto das práticas sociais, o que reforçou o que até então era
somente uma possibilidade: a entrada da psicologia no contexto das políticas
públicas. Mais do que o psicólogo clínico (que era o cargo chefe da procura das
pessoas por esse curso) a psicologia procurou desenvolver estratégias cada vez
mais potentes para se mostrar apta a atuar no SUS, no SUAS, nas escolas, nas
empresas, no esporte, na área jurídica entre várias outras possibilidades. A
atuação do psicólogo é plural, e por isso, sua formação também deve ser plural.
Esse é contexto de duas grandes
mudanças: 1) a oficialização da psicologia como área da saúde; 2) O nascimento
das novas diretrizes do curso de psicologia que levantam a capacidade de
autonomia dos estudantes e que os possibilita não uma especialização precoce,
mas sim, uma escolha de onde os alunos querem aprofundar os seus estudos.
Nesse sentido, o caminho
percorrido pelo sistema conselho (ou mais especificamente a Associação Brasileira
de Ensino em Psicologia, a quem o conselho delegou a discussão sobre a formação
do psicólogo) se estabeleceu a partir do reforço da pluralidade das práticas
psicológicas e a autonomia do estudante frente a elas.
Trago toda essa discussão para
mostrar que não existem vítimas ou culpados no que aponto agora em seguida:
1)
Para o desenvolvimento da pluralidade da
psicologia, foi necessário reduzir a ênfase que os cursos davam à formação do
psicólogo clínico. Sendo assim, os cursos não possuem mais (e como visto
anteriormente, isso é de modo intencional) uma formação focada nas questões
próprias da clínica. As novas diretrizes dão brecha para que seja possível que
um aluno não faça um aprofundamento sobre a clínica, não faça estágio clínico e
ainda sim ele pode (já que é um psicólogo generalista) atender como
psicoterapeuta quando se formar.
2)
Cada vez mais me convenço de que toda a
discussão sobre as abordagens clínicas (não vou dizer nem psicológicas) não
interessa diretamente a política implícita dos sistemas conselhos. Todas as
cartilhas criadas pelos conselhos apontam para uma possível leitura neutra em
relação a essas questões (mas que na verdade são fundadas na leitura
sócio-histórica), o que reforça que o contexto de atuação da psicologia no
âmbito da psicoterapia, não é diretamente assistido por essas instâncias. Não
existem legislações explícitas sobre quais abordagens são reconhecidas e muito
menos instrumentos claros de avaliação que estabeleçam quais abordagens podem
ou não ser utilizadas. Isso porque, se a psicologia precisou se consolidar como
ciência para se tornar profissão, ela abraçou uma boa quantidade de práticas
que não se inserem no discurso da ciência (como a Psicanálise, a
Gestalt-terapia, a Abordagem Centrada na Pessoa, só para levantar alguns
exemplos). Assim, como ela pode se utilizar de um discurso não-científico para
se constituir como ciência? É sem dúvidas um problema.
3)
Se olharmos as discussões dos anos temáticos
produzidos pelo conselho, o ano da psicoterapia foi o ano que menos (na verdade
nenhuma) produziu estratégias políticas e ações da classe dos psicólogos em
relação ao campo da psicoterapia. Na verdade existem ações do conselho de apoio
à ABRAP (associação brasileira de psicoterapia) que é uma instituição que NÃO é
formada só por psicólogos.
Sendo assim, a questão não é o
que nossa profissão permite que sejamos e sim, o que eticamente estamos aptos a
fazer. Nenhum médico termina o curso de medicina como psiquiatra ou pediatra,
ele precisa fazer uma residência que o torne apto para atuar em uma especificidade.
Por que na psicologia tem que ser diferente? Por que acham que 5 anos é suficiente
para formar um clínico? Não conheço qualquer abordagem séria que não fundamente
sua prática na tríplice: terapia pessoal, formação teórica e prática
supervisionada. Se o curso de psicologia não coloca como condição do aluno
fazer o próprio processo psicoterápico, se a psicologia como profissão não
formaliza a discussão sobre abordagens, e na formação do psicólogo há uma
brecha que permite que o psicólogo se forme sem estágio em psicoterapia, logo,
do ponto de vista da lógica, o curso não prepara ninguém para ser
psicoterapeuta.
Não vou aqui discutir se a
psicologia clínica é mais que a psicoterapia (o que sem dúvida é), mas sem
dúvida meu apelo é da responsabilidade dos psicólogos em reconhecer a seriedade
da clínica e de que, para ser psicoterapeuta, o curso de psicologia não é o
suficiente. O exemplo que eu dei da medicina é para mostrar que, na verdade, a
formação generalista do psicólogo não o torna totalmente capacitado a agir em qualquer
contexto, o que pede a atualização e comprometimento com a profissão em
qualquer contexto.
De forma alguma critico a
formação do psicólogo, pois ainda acredito que esta é uma das melhores
formações para os psicoterapeutas. Porém, isso não retira a necessidade que
urge, de uma qualificação profissional (e respeito com os clientes/pacientes).
Isso em nada tem a ver se, na sua formação como psicólogo, você vai optar por
saúde, gestão, educação, social ou etc.
A questão é simples: não quer se
aprofundar numa leitura psicoterápica, não quer fazer terapia e não quer fazer
supervisão, faça um favor a você e ao mundo, não seja psicoterapeuta!
Excelentes colocações.
ResponderExcluirGostaria que todos os estudantes (e até alguns "profissionais" formados) lessem.
Parabéns.
Cristine Cabral
Que bela reflexão!Se tivessemos pelo menos metade dos profissionais que pensassem assim, a psicologia seria bem diferente!Parabéns...
ResponderExcluirVitória Régia