domingo, 8 de maio de 2011

Sobre a Autenticidade na Relação Terapêutica


O que de fato significa o terapeuta ser autêntico no processo terapêutico? Essa questão sempre me trouxe muitas duvidas e dificuldades. Para mim, essa questão se torna extremamente complexa dentro do setting terapêutico, pois o que tem se feito em nome da autenticidade pode muitas vezes ferir a ética, a moral e a própria compreensão do que é o objetivo da psicoterapia na abordagem gestáltica.
Ao contrário do que muitos pensam, o próprio Fritz relutou na mudança do divã para a terapia cara a cara. Mesmo já tendo rompido com a psicanálise clássica, Perls ainda utilizava o divã como um instrumento de sua práxis terapêutica. Somente depois de alguns anos, passou a fazer a terapia “olho no olho” que tanto é elogiada na leitura humanista de modo geral. Já Laura Perls, como sua formação psicanalítica em muito foi atravessada pela técnica ativa de Ferenczi, e por sua formação filosófica nas filosofias do diálogo (Buber e Tilich), já desde o início aderiu à psicoterapia cara a cara como forma de trabalhar a relação dialógica e o vínculo com o cliente.
A partir do desenvolvimento da abordagem, a gestalt-terapia insere no campo da psicoterapia recortes que muito não se assemelham com a psicoterapia convencional verbal: com as influências de Reich e Lowen, ela adere ao trabalho com o corpo no processo terapêutico; com as influências da dialogicidade, ela tenta pensar a relação terapêutica para além do vínculo transferencial; com o psicodrama e a teoria de campo, a gt busca a ação no processo.
Toda essa mudança insere uma postura diferenciada do terapeuta, o que o coloca, muitas vezes, em uma posição que pode ser entendida como vulnerável. A idéia clássica de que tudo é possível na relação terapêutica desde que seja sustentada, cabe aqui perfeitamente.
No Gestalt-terapia de 1951, um dos tópicos abordados por Goodman, é a derrubada da dicotomia clássica infantil X maduro. O desenvolvimento de uma sociedade neurótica assumiu que a experiência espontânea é irresponsável e adoecida. O que é visto como correto e como ajustado é o comportamento comedido e controlado. Ora, se a neurose é o excesso de repressão e a perda da função de ego, ou seja, a redução da espontaneidade do ato no fluxo do contato, a mesma noção deve ser aplicada ao contexto psicoterápico.
Como posso não buscar a minha espontaneidade como terapeuta se eu entendo que reprimir a espontaneidade é o processo de adoecimento? Esta incongruência é básica para se entender o processo de autenticidade em psicoterapia. Se eu atrelo à saúde o fluxo harmônico do self, eu, enquanto terapeuta também devo buscar o mesmo na relação.
Porém, ressalto aqui que o espontâneo nada tem a ver com o irresponsável. Em momento nenhum perdemos nosso lugar de terapeuta e o nosso papel na relação. Se Perls bocejava, ria e tocava seus clientes, tudo isso era usado na potência da terapêutica. E isso é o que temos que sempre ter claro: a minha espontaneidade não pode servir para encobrir o objetivo da abordagem, ou seja, não posso usar minha espontaneidade para aplacar a ansiedade do cliente.
O meu papel como terapeuta é justamente possibilitar a emergência da ansiedade do cliente em uma situação experimental segura, e ao invés de aplacá-la, devo dar suporte para que ele possa vivenciá-la. Ser espontâneo, não é transformar a relação terapêutica em uma troca de histórias de vida. Já ouvi pessoas “compartilharem” suas histórias de vida com cliente com o objetivo de aplacar a ansiedade dele, algo do tipo: “isso acontece com todo mundo”, “não se preocupe que isso passa”. Aí sim fugimos do que se propõe a psicoterapia. Posso até usar minha história no processo, mas não como uma lição de vida, um exemplo ou algo para o cliente “se acalmar”.
Devo aprender a usar minha autenticidade dentro do trabalho terapêutico. A intervenção terapêutica não nasce somente do conhecimento teórico que perpassa minha história. A intervenção nasce do modo como sou requisitado a participar do campo terapêutico, é por ser descentrado pelo “outro” que atravessa o campo, que posso buscar agir sobre ele. É por ser espontâneo e permitir ser atravessado pelo “outro” que posso criar intervenções.
Eu entendo como sendo essa a base da autenticidade na abordagem gestáltica. A autenticidade não se mistura com irresponsabilidade, e aí lembro das palavras de Fernando de Lucca: “Ousadia e responsabilidade”, pra mim, essa sim é a base da ação gestáltica.

7 comentários:

  1. como é a relação terapêutica " além do vínculo transferencial"? não consigo conceber.

    "A intervenção nasce do modo como sou requisitado a participar do campo terapêutico, é por ser descentrado pelo “outro” que atravessa o campo, que posso buscar agir sobre ele. É por ser espontâneo e permitir ser atravessado pelo “outro” que posso criar intervenções"

    não seria isso que vc falou transferência em sua conceituação clássica? o campo é a relação transferencial?

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  2. Adorei a pergunta! Preciso estudar mais sobre a transferência!!!

    Não sei se o campo poderia ser considerado a relação transferencial. Entendo essa problemática a partir de dois sentidos:

    1) Só em conceber a ideia de transferência e contra-transferência (para mim) ainda estamos agindo sobre o campo da personalização. Goodman entende, a partir de uma compreensão fenomenológica da experiência, que a experiência é a realidade mais simples e primeira, e qualquer diferenciação do campo (por exemplo,a ideia de que são duas pessoas) é um a produção a posteriori de racionalização. Sendo assim, eu entendo o campo terapêutico com esse primado da relação, em que o que é dito não é necessariamente meu ou do outro, mas brota de um mesmo "ser da indivisão" (como diria Merleau-Ponty) que é a relação. As palavras nascem não de personalidades ou histórias, mas pela dinâmica entre o falar e o silêncio. Sendo assim, é um só campo, sem vetores de ida ou de volta (transferência e contra-transferência) mas uma expressão primeira que não se faz entre "selves", "seres-no-mundo" ou "sujeitos".

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  3. 2) Como o próprio Laplanche e o Pontalis (no vocabulário de psicanálise) dizem, é sempre importante reconhecer de qual concepção de transferencia estamos partindo. O conceito se transformou na pena dos psicanalistas. De fato, em nada estamos falando de um processo de uma atualização na relação com o terapeuta de da relação do sujeito com suas figuras parentais. Talvez, a compreensão de campo estivesse bem próxima à crítica do Nelson Coelho Junior e do Luís Cláudio Figueiredo (Ética e técnica em psicanálise) ao conceito de campo de Lewin, pois entendo que a gestalt-terapia também trabalha com a sobreposição de passado, presente e futuro no campo incerto do agora. Mas essas três instâncias não não processos subjetivos (o passado do analista e do analisando), mas uma só história impessoal que só se individualiza nos atos (a noção de função de ego). Mesmo pensando como um mesmo campo nessa pertinente crítica, Nelson Coelho Junior (que a base dele é merleau-pontyiana) ainda está trabalhando com o critério de transferência e contra-transferência, ou seja, duas vias da relação. Pra mim isso trás um problema epistemológico, porque ainda estamos falando em dois ICS, ou dois sujeitos.

    Porém, ainda sim acredito que o conceito de campo orgtanismo/ambiente tem muito de Freud.Inclusive ainda quero escrever como que, para Goodman, o livro Gestalt-terapia é um retorno a Freud!

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  4. 3) Eu entendo a noção de transferência como um excelente parâmetro para apontar para a total falência da intersubjetividade. Mas a teoria do self não comporta tal empreendimento. Mesmo acreditando que a partir da leitura de Goodman, não há a possibilidade de uma compreensão do outro (até mesmo porque o ato de compreender é um ato secundário à experiência - também ainda quero escrever sobre isso!!), a noção de um campo organismo/ambiente e de experiência comporta um primado da relação que nos insere em um mesmo ser, ou uma mesma carnalidade ( de novo Merleau-Ponty pra ilustrar). Se faço parte desse mesmo campo, não posso conceber até que ponto me encerra e começa o outro, ou até que ponto o meu íntimo não é uma publicidade. Sendo assim, a intersubjetividade não é uma empresa falida, mas também não é uma possibilidade de compreensão do outro. A intersubjetividade é a possibilidade de reconhecimento de um outro-eu-mesmo, que também se individualiza no ato, mas que faz parte do mesmo campo de indivisibilidade que eu.

    3) Pra concluir, a emergência do "outro" que desvia o campo, não se refere a mim ou ao cliente. Justamente como participamos do mesmo primado da experiência, o outro brota da relação, e por isso, como vai dizer Marcos e Rosane Muller-Granzotto, o clínica como desvio - ou específicamente, a clínica como produção desse outro - individualiza-se na intervenção do terapeuta ou na fala do cliente, mas sem que possamos determinar completamente se nasceu exclusivamente da minha historicidade ou da dele!

    A tua pergunta me fez perceber que ainda se faz necessário refinar muito o que vem a ser a noção de relação. Vejo em muitas leituras da gestalt-terapia uma forma fraca de compreender o que vem a ser de fato relação, e no que implica essa concepção. Sendo muito sincero, não te respondo aqui com total segurança, pois como sabes, é sobre isso que eu tenho me debruçado ultimamente. Minha questão não é só epistemológica, mas é prática: o que se passa entre terapeuta e cliente, e como isso interfere no proceso? Essa é a minha questão...
    abraços

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  5. fiz um comentário enorme e o blogger apagou. ódio. vou te dizer agora só ao vivo.

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  6. Esse comentário merece outro post. Talvez a relação transferencial em GT seja de uma qualidade diferente da psicanálise, uma vez que para nós não interessa se houve édipo ou não, ou se a transferencia é uma atualização edipiana. Quanto à espontaneidade, sinto que tenho muito a aprender com meus clientes. O Vinculo terapeutico precisa ser libertador. Gosto d Yalom quando diz que se deve viver o aqui agora na própria relação tarapêutica, ao invés de ficar-se supondo o que acontece em outros momentos da vida do cliente. Isto também é espontaneidade.

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  7. Pois é Tiger, concordo com você. Mas eu acredito que precisamos justamente procurar compreender o que viria a ser essa "qualidade" diferenciada. Você trouxe um ótimo exemplo que é o do Yalom, que compreender a existência do fenomeno da transferência, mas procura trabalhar com ela de outra forma. Outra coisa é pensarmos a partir de outro paradigma se a transferência não faz sentido para a GT. Ainda estou procurando resposta....rsrsrsrs
    Abraços!

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