sexta-feira, 30 de maio de 2014

Ensaio sobre a Crise da Modernidade e a Educação: Diálogos com Paul Goodman



 Em uma conversa com um colega da Pós-Graduação em Educação, ele me lembrou de um ponto bem interessante. Em Emília no País da Gramática, Pedrinho diz para Dona Benta: “- Ah, assim, sim! – dizia ele – Se o professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até viraria brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porções de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndios...”. Pedrinho sabia muito bem que, nos meses que passava no Sítio, ele aprendia muito mais do que todo o ano na escola. Talvez, Monteiro Lobato que por muitas vezes tem-se tentado tirá-lo das escolas (Não entraremos nessa questão aqui), tenha nos apresentado nosso folclórico arauto de desescolarização. Ora, o que acontecia com Pedrinho era a impaciência - ou intolerância - de nove em cada dez crianças que são encaminhadas para os estudos escolares.  Nosso herói conseguia perceber que a vida encantada do sítio era o “mundo lá fora” que a escola insistia em esconder. No mundo real existem sacis, bonecas falantes, lobisomens, porcos com títulos de marquês, jacarés de vestidos, espigas de milho que sabem tudo (ou que pensam que sabem de tudo).

A escola moderna é sem dúvida a filha mais perfeita do humanismo, pois, é na escola moderna, como diria Paul Goodman, que as crianças aprendem que a vida é rotina, que é desvitalização e inutilidade. O ideal humanista pressupunha que as pessoas deveriam ser escolarizadas para que pudessem se tornar humanas e, por isso, socialmente reconhecidas. O letramento tornou-se o rito de passagem segregador, que divide claramente os capazes e os incapazes, os certos e os errados. Uma educação que presa prioritariamente pela sabedoria (não popular) e o acumulo de conhecimentos, tudo isso junto ao enquadramento a um modelo igualitário (que beira a indiferença) e ao mesmo tempo segregador.

Talvez tenha sido John Dewey um dos primeiros educadores que tentou destituir o modelo humanista de acumulo de conhecimentos e tentar imputar uma nova forma de configurar o lugar da educação. Sua proposta era a de inserir uma atitude diferenciada ou curiosa e uma boa dose de metodologia científica nas crianças. Assim, o professor não era o tutor do conhecimento, mas era um facilitador que tinha como objetivo ajudar o aluno a ser capaz de construir um problema, buscar formas de estudo sobre o problema, levantar e aplicar hipóteses e por fim, solucionar o problema. É claro que essa metodologia empirista de educação não ficou livre de críticas e que seu pragmatismo foi muitas vezes confundido com uma forma de utilitarismo exacerbado. Porém, é louvável o apontamento que Dewey denota do fim (ou crise) do projeto humanista e a necessidade de uma mudança intensa das políticas de educação.

Mas porque tanto alarde para um possível fim do humanismo? O problema do fim ou crise do humanismo é um dos principais fundamentos do debate dos séculos XX e XXI, que denota a guerra constante entre os ‘’modernos’’ e os “pós-modernos”. Grosso modo, podemos dizer que o debate acerca dessa problemática ronda em torno de uma pergunta fundamental: é ainda possível que seja cumprida a promessa da modernidade? A modernidade buscava o esclarecimento nos caminhos de Descartes, Locke, Kant e Hegel. Para todos eles, de certo modo, era a razão (ou esclarecimento) a via possível para o desenvolvimento de uma educação (e, por conseguinte uma sociedade) humanitária.

O século XX viu como os próprios olhos o resultado da filha mais amada da modernidade, a saber, a ciência. O fascismo, a bomba atômica, a eugenia, as estratégias midiáticas de controle popular, tornaram a promessa moderna de salvação pela razão, um problema que os Frankfurtianos não se esquivaram de debater.  É claro que é ingênuo pensar que esse debate não tenha afetado o melhor instrumento da modernidade, a saber, a escola.

No belíssimo livro chamado “A nova filosofia da educação” de Ghiraldelli Jr e Susana de Castro, Ghiraldelli Jr nos aponta o lugar da escola na normatização da sociedade moderna:

“É como se a era da individualidade, da democracia liberal moderna tivesse desembocado na era da democracia das massas em que todos são individuados, mas não se tornam indivíduos, uma vez que a prerrogativa destes, a autonomia, é em grande medida ilusão. A escola, nesse meio, é a máquina produtora dos que vão viver essa ilusão.” (p. 46)

Goodman já havia mostrado em seu ensaio Freedom and Autonomy de 1972, que o grande erro da sociedade ocidental é busca constante de liberdade e não de autonomia. A liberdade política é uma ilusão neo-liberal, enquanto que a verdadeira política nasce da verdadeira autonomia.  Goodman sabia que o modelo escolar em nada colaborava na produção de uma autonomia, pois, como ela afirma em Compulsory Miseducation, é na escola

E não em casa ou em contato com os amigos, a maioria dos nossos cidadãos de todas as classes aprende que a vida é, inevitavelmente rotina, despersonalização e venalidade, que é melhor obedecer e calar-se, que não há espaço para a espontaneidade, a sexualidade aberta e liberdade de espírito. Formados nas escolas, se adaptam aos mesmos postos de trabalho, à mesma cultura, e à mesma política. Esta é a educação, a deseducação, a adaptação às normas nacionais e o enrolamento em função das ‘necessidades nacionais’. (Goodman, 1964, p. 23 )

  Confesso que muitas vezes penso em ceder ao mote de Ivan Illich em seu clássico “Sociedade sem Escolas” como forma de desinstitucionalizar a escola e, na melhor forma anarquista, destruir, de uma vez por todas, essa instituição dessubjetivante. Porém, ainda é Paul Goodman quem vem ao socorro de não sucumbir a tamanho radicalismo. Goodman é, talvez, quem melhor reconhece a ambigüidade da modernidade e a ambigüidade do esclarecimento. Goodman reconhecia claramente a problemática de Illich (inclusive Illich o considerava o seu “pai espiritual”), ou seja, a ideia de que a institucionalização é o principal motor da violência e da destrutividade. Não era um anti-humanista, mas poderia facilmente concordar com a sabedoria de Ghiraldelli Jr que, a partir daí Heidegger mostra o fundamento da violência institucional que vivemos hoje: “Essa violência teria um corpo bem determinado: a cabeça seria formada pela filosofia, como epistemologia ou ‘metafísica da subjetividade’; o coração seria a ciência; as mãos, a tecnologia” (Ghiraldelli Jr, 2014, pag. 31). Ou seja, os produtos da modernidade se tornaram os principais agentes de violência e de opressão contemporânea.

Sem dúvidas o projeto moderno transformou o homem em um objeto de estudo moldável, objetivo e parte da natureza comum. Goodman, nesse sentido apresentava uma antítese do naturalismo tal como ele é pensado pelos modernos. Sim, o homem é natural, mas a natureza não pode ser entendida como um lugar estático e previsível, objetivo e capaz de serem inferidas leis determinantes e invariáveis (seja sobre o homem ou qualquer outro campo natural). Goodman apontava uma leitura do universo quase como a de Lucrécio e sua imprevisibilidade dos átomos, ou Heraclito e o Panta Rei. Goodman concordava diretamente com a ideia de uma natureza que tem uma força motriz, tal como o Elán Vital Bergsoniana ou com a natureza como um ser bruto tendo como princípio a diferenciação constante, como encontramos em Merleau-Ponty. As intenções de Goodman eram como muitos tentaram afirmar, quase teológicas.

Dentro desse paradigma, as escolas precisam irromper com o fundamento da modernidade e assumir esse novo lugar. Essa nova proposta foi constituída a partir de influências pragmatista, mas principalmente de base fenomenológica. Para Goodman a escola deve ser o lugar fundamental de aprender e reaprender a ver, ouvir e sentir o mundo, não porque isso precisa ter uma repercussão prática, mas para aprender a acolher a vida como potência e criação. A escola não deve ser um lugar de aprendizado de conteúdos rígidos, mas um ambiente livre de ir e vir (Literalmente, pois Goodman era contra a obrigatoriedade escolar) e que buscasse a educação estética. Talvez Goodman, concordasse que, duas áreas quase que negligenciadas na educação básica, a saber, a educação corporal (Física) e artes, deveriam ser basilares para a constituição da criança. Isso porque, é na vivência do corpo e da expressividade que aprendemos a ampliar nossos horizontes de curiosidade e aprendemos a acolher a diferença no mundo e em nós mesmos. A escola deve ser o espaço de acolhimento aos conflitos genuínos, à aquilo que é estranho e ao indefinido, e se distanciar do espaço de conhecimento do já dito.

 Para Goodman, a escola ainda é o principal instrumento de transformação social e política e nisso ele não abandona o projeto moderno. Mas somente quando a escola deixar de ser um espaço centralizador, totalitário e que inibe a criatividade, é que poderemos de fato trazer transformações significativas no status quo social e político. A escola no modelo Goodmaniano, se enquadra no clichê, mas que poucos aplicam: a escola não é o espaço fechado de estudo, mas a própria vida e a própria comunidade. O modelo escolar de Goodman é o de uma escola sem prédios, que os tutores caminham pelas ruas e que estão articulados com a própria comunidade. A escola promove a experimentação, a ação genuína e a problematização não de uma hipótese científica, mas da própria vida.

Esse é o fundamento de uma educação propriamente anarquista, ou porque não dizer, gestáltica.

  

 Sugestões e referências -
Growing Up Absurd - Paul Goodman
Drawing the Line Again - Paul Goodman
Compulsory Miseducation - Paul Goodman
Sociedade sem Escolas - Ivan Illich
A nova Filosofia da Educação - Ghiraldelli Jr e Susana Castro
Experiência e Educação - John Dewey

 

 

 

 

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sobre Fritz Perls e Paul Goodman

"O mais instigante é pensar como duas pessoas, com vivências tão diferentes, em contextos tão distintos, e atravessados por mundos tão distantes, poderiam se encontrar em ideias tão originais.
 
Fritz era um alemão, um psiquiatra presunçoso que precisou largar tudo na vida várias vezes, e que abandonou sua identidade tantas vezes quanto necessário. Jogou sua identidade de alemão, de marido, de pai, de psiquiatra, de psicanalista, de guru, tudo na lata do lixo para se entregar ao que de fato sempre o interessou mais: a vivência aqui e agora. Fritz alcançou o nirvana? Não. Muito pelo contrário. Até seus últimos dias de vida, Fritz era atravessado pela insegurança, pelo arrependimento, pela culpa. No fundo, o que torna Fritz Perls um dos maiores nomes da psicoterapia mundial não foi, somente, a genialidade dos seus insights, mas sim a humanidade que nunca deixou de atravessá-lo.
Goodman era um nova-iorquino, viveu pouquíssimo tempo em outra cidade: nasceu, viveu e morreu em Nova York. Escrevia sobre a realidade das ruas, das escolas, dos guetos e do sexo. Nunca foi um puritano, mas, ainda sim, tudo o que queria era uma sociedade mais justa. Lutou até o último segundo para viver daquilo que o completava, seu direito de escrever sobre o que ele quisesse. Não era um filósofo, não era um sociólogo, não era um psicólogo, não era um pedagogo, não era um político: era um artista e um escritor. Queria falar sobre sua vida, seu mundo, sua realidade. Queria encontrar algum sentido para a sua sexualidade e seu desejo. Queria poder ser aceito por quem ele realmente era, mas principalmente queria deixar um mundo melhor para seus filhos.
Goodman era um nova-iorquino com a alma de europeu, Perls era um alemão com a alma de um americano. Se Perls era um existencialista e Goodman um pragmatista, podemos ver claramente que Perls tinha um lado pragmático fortíssimo, e Goodman escrevia como os grandes existencialistas."
 
(Trecho do livro Fritz Perls e Paul Goodman: Duas Faces da Gestalt-terapia - Editora Premius - Autor: Marcus Cézar Belmino)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Publicação do Livro Fritz Perls e Paul Goodman: Duas Faces da Gestalt-Terapia

"Longe de querer esgotar o estudo sobre esses enigmáticos autores, este livro procura ser uma introdução aos modos como Fritz e Goodman construíram seus legados. Assim, um dos motivos fundamentais de a Gestalt-terapia ter construído tantas vozes distintas foi o fato de esta abordagem já ter nascido cindida, e, logo de início podermos encontrar dois grandes projetos gestálticos: o projeto de Fritz Perls e o projeto de Paul Goodman. Fritz Perls dedicou sua vida a produzir, através da clínica, estratégias de desenvolvimento pessoal. Já Paul Goodman utilizou a clínica como trampolim para seu real interesse: repensar o campo da política e da educação.
Talvez Fritz e Goodman, que hoje sabemos que nunca se gostaram e seus contatos foram mínimos, não soubessem que ambos tinham muito em comum. Em suas teorias encontramos propostas parecidas, mas também ideias bem diferentes. É claro que o leitor atento a este livro pode chegar à conclusão de que muitas vezes podemos sim ignorar a diferença entre esses autores e considerar desnecessário esse preciosismo de dizer quem disse o quê, no início da Gestalt-terapia. Porém, este livro também busca apresentar outra perspectiva: a de um imenso respeito a essas duas personalidades, pois, cada qual a seu modo, revolucionaram seus campos de atuação."

Fritz Perls e Paul Goodman: Duas Faces da Gestalt-terapia

Editora Premius
2014

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segunda-feira, 17 de março de 2014

E a Brasilidade?



Na década de 60, Paul Goodman escrevia um de seus mais emblemáticos livros. O livro chamado Growing Up Absurd. Após décadas como psicoterapeuta, e, principalmente, décadas como professor de jovens e crianças, Goodman resolve iniciar claramente sua série de ataques contra a desesperança da juventude americana.
Para Goodman, a crise vivida pelos jovens da década de 60 era na verdade, por incrível que pareça, uma crise no patriotismo. Goodman percebeu algo fundamental na juventude americana, o fato de que havia se tornado imoral ou prepotente sugerir um discurso patriótico. O resultado dessa cisão foi claramente o movimento hippie, que tentou a todo custo viver fora da cultura, e a delinquência juvenil que queria destruir a cultura usando as próprias ferramentas sociais. Pelo menos, esses movimentos ainda queriam ter uma história.
Porém, o grande problema da crise do patriotismo era um erro fundamental: os jovens não conseguiam mais distinguir o Sistema da Sociedade. Assim, culpavam a burocracia, a mediocridade, a soberba e desigualdade como sendo os cavaleiros do apocalipse que aparecem para destruir a vida e que a sociedade estava condenada ao seu constante fracasso.
Quase 60 anos depois, reencontramos o mesmo movimento em solos brasileiros. Hoje em dia, defender a bandeira, o solo e a história brasileira virou um sentimento distante e por isso, é imoral qualquer  sentimento patriótico. Goodman dizia que, o mais triste quando dava aula para adolescentes era que, quando falava sobre Beethoven, sobre Spinoza, sobre Kant, sobre Platão, os adolescentes olhavam para ele meio encantados e meio tristes, pois no fundo, sentiam uma grande inveja dele ter uma história e eles não.
A crise do patriotismo é uma crise da história. O sistema organizado nos fez crer que o Brasil é Dilma, o Brasil é Collor, o Brasil é Lula, o Brasil é o preconceito, o Brasil é a Copa. O Brasil não é um gigante que acordou ou dormiu, mas sim, o Brasil é cada marca da historicidade, cada cheiro, cada sangue, cada vestígio de um passado de lutas de classes e de raças, de submissão e destruição, de vitórias e conquistas, de cada homem que destruiu sua comunidade, mas também todos aqueles que a reergueram. Vestígios que nem o maior dos microscópios vai conseguir captar essas marcas em nossos poros, pois eles são completamente virtuais. É o sentimento de ter nascido e crescido em uma comunidade, que, junto com suas grandes vitorias, mas também com seus maiores defeitos e vergonhas, fazem parte daquilo que estava inscrito em mim muito antes de eu nascer. É aceitar que a “Sociedade que eu vivo é minha” (nome de um dos principais livros de Paul Goodman)
É porque esquecemos que temos um passado, que não vemos qualquer possibilidade de futuro. Quando esquecemos que o mundo já foi diferente, acreditamos com todas as forças que ele jamais vai mudar. E o que nos resta, é olhar para os jardins floridos dos outros países, ou sentar e aguardar a próxima explosão que destruirá mais uma parte de nossa paz.  
Goodman ainda está a espreita, mostrando e sussurrando aos ouvidos humanos que a crise da comunidade é também uma crise da sexualidade e da criação, é uma crise da repressão daquilo que somos e de como somos. Aqueles que se envergonham de sua brasilidade, deveriam parar de gritar aos quatro cantos seu terror e buscar olhar para a sua própria face envergonhada no espelho, que conta a história dos restos de um passado vergonhoso que culmina em sua mais profunda subjetivação. Quer destituir o Brasil? Faça primeiro um exercício de se destituir deitado em um divã, face a face com um psicoterapeuta ou na respiração ofegante de um exercício bioenergético.

Criticar o sistema é necessário, procurar novas formas de relação são necessárias, construir pontes para um mundo melhor é obrigação. Mas correr da própria história, do próprio passado e da própria natureza, isso sim é vergonhoso! 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Gestalt-terapia perante o Estado

Reminiscências do último encontro do grupo de estudos sobre Paul Goodman:

Até que ponto podemos de fato encontrar uma linha de fuga perante o estado? Uma coisa é clara, o ideal iluminista e o nosso querido Leviatã se mostraram cada vez menos produtivos. A lógica da maioria das teorias políticas modernas é a de que, o homem precisa do estado. Porém, hoje, séculos depois, constatamos a mais dura verdade: o estado não cumpre seu papel.
 A troca é simples e justa, deveríamos nos alienar perante o estado, nos tornando propriedade dele, para que o estado, em troca, nos desse condições mínimas de sobrevivência. Saúde, educação, moradia e comida. Talvez um pouco de diversão. Mas a verdade é que, essa promessa, sabemos por A+B (até também o Z) de que essa prerrogativa nunca foi cumprida. O pensamento de direita reforça a necessidade do estado e que, estaríamos protegidos frente à nossa própria natureza. O pensamento de esquerda reforça um novo estado, com um caráter socialista, mas ainda comprado e travestido pela lógica do capital. Olhando a fundo, a esquerda brasileira quer, antes de qualquer coisa, transformar o proletariado em um consumidor.
A Gestalt-terapia é eminentemente anarquista, e a anarquia é a única política segura. É claro que, não estamos aqui criando uma nova teoria do estado. A nossa reflexão aqui é baseada na ideia de que abordagem gestáltica de Paul Goodman é uma ética, e por isso, as discussões práticas de uma teoria do estado (ou de sua ausência) são secundárias. Além de suas análises pedagógicas e políticas, Goodman também escreveu propostas práticas para ambas as problemáticas.
A questão para Goodman é baseada, na verdade, em uma constatação que as formas mais basilares da vida poderiam concordar: toda forma de funcionamento coercitivo produz o impedimento da excitação e da criatividade. Isso vale para a psicoterapia, vale para a política e vale para a educação. Assim, a única forma segura, afetiva e humana de criar estratégias de desenvolvimento humano é a partir das micropolíticas. São os pequenos grupos, associações, sindicatos, conselhos que podem, efetivamente, compreender e produzir uma transformação social. Aprendemos pela coerção a ser perversos, a construir uma sociedade desigual e injusta. Goodman é claro no livro Gestalt-terapia: a partir de uma leitura antropológica, nós que nos sentimos hegemônicos e que somos filhos da cultura ocidental, erramos no nosso desenvolvimento cultural. Trocamos nossas necessidades mais elementares por abstrações e nos distanciamos de nossa criatividade. Criamos um medo social da criatividade, do sexo, da morte e, pior, da possibilidade de integração.
Vale a pena reclamar um mundo antigo perfeito? Não. Vale a pena derrubar o estado? Não. Vale a pena desistir? Não. Um Foucaultiano sabe que o poder e as artimanhas do poder tem sua genealogia, e que como tal, a opressão não é “natural” ao homem. Na verdade não podemos naturalizar a natureza. Querer retornar a um mundo perfeito, anterior a esse nosso erro antropológico básico é ingênuo. A pergunta é, e agora em diante? O Leviatã já está aí, o estado já é pura coerção, ou seja, os rolézinhos já não podem ocorrer. O gigante, ao levantar, viu que o estado o torna um mero Gulliver: ora se sente gigante amarrado no chão, ora se sente minúsculo.
Assim, como dito anteriormente, a única política segura é construir pequenos grupos. As microsociedades possibilitam um contato mais direto entre as pessoas e a construção de propostas mais integradas às necessidades de cada um. A abstração da magnitude estatal, pressupõe que esqueçamos as relações mais simples da vida. Assim, se queremos alguma mudança significativa no estilo de vida cada um, devemos abrir mão da traição contra nossa própria natureza (como vai dizer Goodman em seu May Pamphlet) e retornar ao contato mais íntimo com as relações comunitárias (que em nada tem a ver com a formação coercitiva das sociedades complexas). Aos poucos, algum sentido pra vida pode ser restaurado, e as relações humanas se tornam mais significativas, excitantes e criativas.

Essa é a utopia gestáltica. 

sábado, 18 de maio de 2013

Sobre Psicose, Desejo e Intervenção


Não há nada de desejante ou desejável na loucura. A loucura não se insere nos discursos do consumo.Quer dizer, mais do que o consumo, a loucura não se insere no discurso da dívida, nos quais a construção da sociedade contemporânea se sustenta. É somente através dos olhos desejantes de um literário, de um artista, de um filósofo, de um psicólogo, que enxergamos algo de “interessante” no discurso do louco. Mas por que a loucura fica a parte desse discurso? Uma rápida investigação nos levaria a uma resposta mais óbvia: a loucura é estigmatizada e marginalizada por uma construção sócio-histórica.
Porém essa resposta é incompleta ou no mínimo ingênua. Há outra dimensão fundamental que atravessa a loucura, a saber, a angústia. Assim como os discursos envoltos na morte, a loucura transparece o seu lado mais potente quando acessa aquilo que nela tem de mais profundo: a angústia como afeto primordial, a angústia como representante da ausência ou excesso de excitamentos. Essa é a pista de porque, nos laços sociais, as produções psicóticas não são alvos de um interesse, de uma curiosidade em volta de suas formações.
Mas nesse sentido, quem genuinamente se ocupa da psicose? Na verdade, só olha para psicose aquele que, em alguma circunstância, já foi destituído nos olhares não desejantes da melancolia, aquele que não construiu um sentido frente as produções alucinatórias, delirantes, identificatórias, mas sim, construiu um desespero de ver alguém que ama, acometido do não sentido. Ou então, se interessa pela loucura aquele que sabe da inalienabilidade da angústia, aquele que mesmo depois de terapias milagrosas, tratamentos farmacológicos e promessas de todos os discursos da ciência, no fundo sabe que não está salvo, que vive assombrado pelo retorno do medo, da ansiedade e da desrazão. Sabe que o canto entoado pelos gestalt-terapeutas em prol da criação (ou da capacidade do ajustamento criador) não é uma forma romântica de olhar para o homem. Criar não é fugir da angústia, é saber que não tem como não olhá-la, mas sempre tem como produzir um ato perante ela. Não há remédio para o invisível, para a passividade.
Só se ocupa da Loucura verdadeiramente aquele que desistiu de curá-la, ou mais precisamente, decidiu renunciar o desejo de superação.  Tal como nos mostrou Georges Bataille, é só na renúncia que há o reconhecimento do impossível, e que, a clínica da psicose nos ensina que são justamente os jogos de poder, as ironias, os chistes, os sarcasmos que destroem cada vez mais os sujeitos que fazem produções psicóticas. É a demanda constante de aceitar e ao mesmo tempo curar que sufoca o sujeito da psicose.
Entender a clínica da psicose assim é reconhecer um discurso político implícito a essa concepção. Toda abordagem clínica possui, mesmo que de forma não declarada, um discurso político. Talvez esse seja o erro dos psicólogos sociais que acusam a clínica de elitista e alienada. Ao formalizar uma proposta de terapêutica frente a uma dimensão de adoecimento, toda clínica constitui um discurso social.
Nesse sentido, a clínica gestáltica de atenção à psicose tal como é pensada por Marcos e Rosane Muller-Granzotto, pressupõe pelos menos três dimensões de intervenção. A dimensão ética pressupõe a acolhida ao estranho, ou seja, acolhida às produções psicóticas como formas de defesas frente ao excesso ou ausência de demandas ambíguas. O clínico gestáltico que atende em regime de psicoterapia, busca salvaguardar o direito de humanidade, ou mais precisamente, o direito de criatividade às produções psicóticas. Trata-se de, ao reconhecer o processo de ajustamento criador das produções psicóticas, construir uma escuta que não demande dessas criações mais do que elas podem suportar. Por isso, não se trata de eliminar o delírio, a alucinação ou qualquer outra formação psicótica, mas sim, possibilitar um espaço de organização dessas construções.
Porém, não é somente com a psicoterapia que se trabalha no campo da psicose. Uma peça fundamental na atenção à loucura é o trabalho na dimensão política. Esse trabalho desenvolvido pelo acompanhante terapêutico (AT), é que vai desenvolver a articulação política, ou seja, desejante, que os sujeitos das produções psicóticas não são capazes de atender. O AT é aquele que vai às ruas, às casas, aos trabalhos, para conseguir de fato “secretariar” o campo do desejo, e assim, desenvolver as possibilidades de inserção política tão insuportáveis para esse indivíduo.
Por último, não podemos esquecer a dimensão antropológica, que é aquela que possibilita o lugar das produções de inteligência social. Além do acolhimento ético e da articulação política, o psicoterapeuta e o AT também devem se ocupar de auxiliar os sujeitos da psicose das relações sociais, dos sentimentos, dos momentos de festa ou formas culturais que sejam suportáveis para eles. Lembremos que, os sujeitos esquecidos nos hospitais mentais, muitas vezes abandonados pela família, ou mesmo aqueles que, por situações econômicas mais abastadas são tutoriados por um cuidador ou algo do tipo, também sofrem pela estigmatização, pelo esquecimento e pela saudade. Também buscam contatos sociais e reconhecimento de sentimentos e vontades. É nesse momento, que os profissionais precisam atentar para o reconhecimento das necessidades dos indivíduos e, nesse sentido, possibilitar o lugar da festa, do encontro, da comemoração (ou seja, de memorar juntos). Ou seja, de acolher e possibilitar o encontro interpessoal possível desses indivíduos.
Sendo assim, a atenção ética, política e antropológica às produções psicóticas possibilitam uma verdadeira clínica ampliada, comprometida com as produções individuais, as construções sociais e as formas de interação que, antes de tudo, superam essa dicotomia constante nos discursos psicológicos e sociológicos: a impossibilidade de articulação entre indivíduo e sociedade.

Sugestão de Leitura:

Psicose e Sofrimento
Autores: Marcos e Rosane Muller-Granzotto
Editora Summus, 2012

Clínicas Gestálticas: Sentido ético, político e antropológico da teoria do self
Autores: Marcos e Rosane Muller-Granzotto
Editora Summus, 2012

Gestalt-terapia
Autores: Perls, Hefferline e Goodman
Summus, 1997

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

PSICOLOGIA CLÍNICA: PROFISSÃO, RESPONSABILIDADE E ÉTICA


Depois do post anterior sobre as especificidades da atuação do psicólogo, algumas pessoas têm me perguntado sobre a formação do psicólogo clínico. A pergunta mais básica, e que é fundamental, que eu tenho ouvido é: “Eu posso abrir um consultório se eu não tiver feito a ênfase em clínica?”. Sem dúvidas é muito pertinente a questão, pois ela abrange desde questões legais até os aspectos éticos da atuação clínica.
Primeiro ponto fundamental diz respeito aos aspectos legais da formação do psicólogo. Como dito no post anterior, a formação do psicólogo é generalista. Mesmo com a proposta das Ênfases, não aparece no diploma do psicólogo nenhuma referência à qual(is) ênfase(s) ele cursou, muito menos qual abordagem ele fez estagio. A formação do psicólogo permite o profissional atuar em qualquer área da psicologia, incluindo a clínica.
Historicamente, a psicologia (no Brasil) ficou muito atrelada ao desenvolvimento da psicologia clínica. Nas duas últimas décadas houve um movimento intenso de transformação da psicologia dentro do contexto das práticas sociais, o que reforçou o que até então era somente uma possibilidade: a entrada da psicologia no contexto das políticas públicas. Mais do que o psicólogo clínico (que era o cargo chefe da procura das pessoas por esse curso) a psicologia procurou desenvolver estratégias cada vez mais potentes para se mostrar apta a atuar no SUS, no SUAS, nas escolas, nas empresas, no esporte, na área jurídica entre várias outras possibilidades. A atuação do psicólogo é plural, e por isso, sua formação também deve ser plural.
Esse é contexto de duas grandes mudanças: 1) a oficialização da psicologia como área da saúde; 2) O nascimento das novas diretrizes do curso de psicologia que levantam a capacidade de autonomia dos estudantes e que os possibilita não uma especialização precoce, mas sim, uma escolha de onde os alunos querem aprofundar os seus estudos.
Nesse sentido, o caminho percorrido pelo sistema conselho (ou mais especificamente a Associação Brasileira de Ensino em Psicologia, a quem o conselho delegou a discussão sobre a formação do psicólogo) se estabeleceu a partir do reforço da pluralidade das práticas psicológicas e a autonomia do estudante frente a elas.
Trago toda essa discussão para mostrar que não existem vítimas ou culpados no que aponto agora em seguida:
1)     Para o desenvolvimento da pluralidade da psicologia, foi necessário reduzir a ênfase que os cursos davam à formação do psicólogo clínico. Sendo assim, os cursos não possuem mais (e como visto anteriormente, isso é de modo intencional) uma formação focada nas questões próprias da clínica. As novas diretrizes dão brecha para que seja possível que um aluno não faça um aprofundamento sobre a clínica, não faça estágio clínico e ainda sim ele pode (já que é um psicólogo generalista) atender como psicoterapeuta quando se formar.
2)     Cada vez mais me convenço de que toda a discussão sobre as abordagens clínicas (não vou dizer nem psicológicas) não interessa diretamente a política implícita dos sistemas conselhos. Todas as cartilhas criadas pelos conselhos apontam para uma possível leitura neutra em relação a essas questões (mas que na verdade são fundadas na leitura sócio-histórica), o que reforça que o contexto de atuação da psicologia no âmbito da psicoterapia, não é diretamente assistido por essas instâncias. Não existem legislações explícitas sobre quais abordagens são reconhecidas e muito menos instrumentos claros de avaliação que estabeleçam quais abordagens podem ou não ser utilizadas. Isso porque, se a psicologia precisou se consolidar como ciência para se tornar profissão, ela abraçou uma boa quantidade de práticas que não se inserem no discurso da ciência (como a Psicanálise, a Gestalt-terapia, a Abordagem Centrada na Pessoa, só para levantar alguns exemplos). Assim, como ela pode se utilizar de um discurso não-científico para se constituir como ciência? É sem dúvidas um problema.
3)     Se olharmos as discussões dos anos temáticos produzidos pelo conselho, o ano da psicoterapia foi o ano que menos (na verdade nenhuma) produziu estratégias políticas e ações da classe dos psicólogos em relação ao campo da psicoterapia. Na verdade existem ações do conselho de apoio à ABRAP (associação brasileira de psicoterapia) que é uma instituição que NÃO é formada só por psicólogos.
Sendo assim, a questão não é o que nossa profissão permite que sejamos e sim, o que eticamente estamos aptos a fazer. Nenhum médico termina o curso de medicina como psiquiatra ou pediatra, ele precisa fazer uma residência que o torne apto para atuar em uma especificidade. Por que na psicologia tem que ser diferente? Por que acham que 5 anos é suficiente para formar um clínico? Não conheço qualquer abordagem séria que não fundamente sua prática na tríplice: terapia pessoal, formação teórica e prática supervisionada. Se o curso de psicologia não coloca como condição do aluno fazer o próprio processo psicoterápico, se a psicologia como profissão não formaliza a discussão sobre abordagens, e na formação do psicólogo há uma brecha que permite que o psicólogo se forme sem estágio em psicoterapia, logo, do ponto de vista da lógica, o curso não prepara ninguém para ser psicoterapeuta.
Não vou aqui discutir se a psicologia clínica é mais que a psicoterapia (o que sem dúvida é), mas sem dúvida meu apelo é da responsabilidade dos psicólogos em reconhecer a seriedade da clínica e de que, para ser psicoterapeuta, o curso de psicologia não é o suficiente. O exemplo que eu dei da medicina é para mostrar que, na verdade, a formação generalista do psicólogo não o torna totalmente capacitado a agir em qualquer contexto, o que pede a atualização e comprometimento com a profissão em qualquer contexto.
De forma alguma critico a formação do psicólogo, pois ainda acredito que esta é uma das melhores formações para os psicoterapeutas. Porém, isso não retira a necessidade que urge, de uma qualificação profissional (e respeito com os clientes/pacientes). Isso em nada tem a ver se, na sua formação como psicólogo, você vai optar por saúde, gestão, educação, social ou etc.
A questão é simples: não quer se aprofundar numa leitura psicoterápica, não quer fazer terapia e não quer fazer supervisão, faça um favor a você e ao mundo, não seja psicoterapeuta!